sexta-feira, 22 de abril de 2011

O julgamento-farsa de Tiradentes

Com a pena decidida por Carta Régia, em Lisboa, dois anos antes do seu julgamento, o primeiro grande herói e revolucionário brasileiro foi condenado sem direito à defesa, com depoimentos tomados sob tortura, por denunciar o assalto praticado por Portugal contra o Brasil e por defender as riquezas do seu país

SÉRGIO CRUZ

O alferes da cavalaria regular da Capitania de Minas Gerais, Joaquim José da Silva Xavier, mais popularmente conhecido como “Tiradentes”, o primeiro grande herói e revolucionário brasileiro, foi julgado e condenado por um tribunal farsa, sem direito à defesa, com depoimentos tomados sob tortura e com penas já decididas muito antes de iniciado o julgamento.

A acusação contra o alferes e seus companheiros foi a de que eles cometeram o crime de denunciar o assalto praticado por Portugal contra a nação brasileira e defenderam as riquezas de seu país. Seu crime foi o de afirmar que o Brasil poderia ser livre de Portugal.

Os revoltosos não tinham que ser julgados, dizia a coroa. Tinham que ser “punidos exemplarmente” por ousarem lutar pela Independência do Brasil e pela instalação de uma República. Assim determinava a Carta Régia que instituiu o tribunal farsa: “Devem ser sentenciados uns malévolos, indignos do nome de português, habitantes do espírito de infidelidade por conspirarem perfidamente para se subtraírem da sujeição devida ao alto e supremo poder que Deus me tem confiado, pretendendo corromper a lealdade de alguns dos meus fiéis vassalos, mais distintos da Capitania e conduzir o povo inocente a uma infame rebelião”.

O tribunal seguiu as ordens da rainha louca e condenou à morte o líder do movimento. A sentença é lida em 18 de abril de 1792. “Mostra-se que entre os chefes, e cabeças da Conjuração, o primeiro que suscitou as idéias de república foi o Réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da Cavalaria paga da Capitania de Minas, o qual há muito tempo, que tinha concebido o abominável intento de conduzir os povos daquela Capitania à uma rebelião, pela qual se subtraíssem da justa obediência devida à dita Senhora, formando para este fim publicamente discursos sediciosos, que foram denunciados ao Governador de Minas antecessor do atual, e que então sem nenhuma razão foram desprezados”.

O regime português vivia nesta época uma grave crise, fruto de suas contradições internas, mas principalmente em conseqüências da submissão ao domínio econômico exercido pela Inglaterra.

Desde a assinatura do Tratado de Methuem (1703) Portugal havia se submetido à supremacia inglesa e afundava cada vez mais aumentando seu endividamento com a coroa britânica. Com o fim da administração do Marquês de Pombal, período em que houve alguma resistência contra os ingleses, a situação se deteriorou com a subida ao trono de D. Maria I.

Nesta época, não apenas Portugal, mas todas as monarquias européias viviam em profunda crise. Todo o sistema colonial começava a desmoronar. A independência das colônias inglesas na América do Norte tinha sido um duro golpe para a coroa britânica. Mas não era só esse o problema. O próprio regime feudal estava prestes a receber um golpe mortal com repercussões em toda a Europa. A eclosão na França, alguns anos após a Inconfidência Mineira, da revolução que varreria a monarquia chefiada por Luiz XVI e apontaria o fim do feudalismo.

É neste contesto que se desenvolve a luta dos brasileiros pela independência de seu país. E é também por esse quadro de crise, instabilidade e decadência de Portugal, que se abateu uma violenta repressão sobre os revoltosos de Minas Gerais. Nas mãos do setor mais retrógrado da sociedade portuguesa, a coroa transformou a política em relação ao Brasil em política de terror, de aprofundamento dos saques de suas riquezas e de perseguições políticas implacáveis.

“VIRADEIRA”

Ao contrário de Pombal, que via no Brasil um possível parceiro em sua luta contra o domínio inglês – o que proporcionou um certo desenvolvimento, mesmo que limitado, das forças produtivas no Brasil – , a administração surgida após a “Viradeira” de 1777, que trouxe Martinho de Melo e Castro à sua frente, encarava o Brasil não como uma nação em formação, ou como um eventual aliado, mas sim como uma mera colônia que deveria abastecer Portugal com todo o ouro necessário para fazer frente às suas dívidas com a coroa britânica. Na opinião do novo Ministro dos Assuntos Ultramarinos, no Brasil não devia ser permitido nada que não fosse a extração de ouro para ser enviado aos cofres da rainha. Tudo o mais deveria ser implacavelmente combatido. As empresas que floresceram no período anterior deveriam ser todas fechadas. Tudo deveria estar voltado única e exclusivamente para a extração de ouro e nada mais.

Neste sentido, na administração de D. Maria I foram tomadas várias decisões contrárias aos interesses do país. Mas, certamente, as duas principais foram a Carta Régia de 1785, proibindo a existência de qualquer fábrica no Brasil, e o famoso documento elaborado por Martinho de Melo e Castro, em 1788, para servir de orientação ao novo governador que assumiria a administração da capitania de Minas Gerais, o Visconde de Barbacena.

ARROCHO

O documento secreto propunha um aprofundamento sem precedentes no arrocho sobre a população da capitania. Determinava a decretação da Derrama para a cobrança dos impostos atrasados e a intensificação das perseguições políticas contra os militares e o clero.

Em um trecho do documento, o ministro deixa claro a sua insistência em perseguir os habitantes da capitania: “Entre todos os povos de que compõem as diferentes capitanias do Brasil, nenhuns talvez custaram mais a sujeitar e reduzir à devida obediência e submissão de vassalos ao seu soberano, como foram os de Minas Gerais”.

Depois de uma longa digressão sobre a situação brasileira e de Minas, ele determina que sejam dissolvidas as tropas com contingente brasileiro (suspeitos) e que o governador decrete imediatamente a derrama para cobrar a dívida em atraso, que chegava a 538 arrobas de ouro.

Essas duas decisões provocaram uma grande revolta na população brasileira. Elas acabaram se transformando no estopim de uma grave crise política. Esta crise, que se transformaria mais tarde numa crise revolucionária, só iria se resolver definitivamente três décadas depois, com a conquista da Independência política em 1822.

SÍMBOLO

Tiradentes tomou a frente deste movimento de rebeldia e transformou-se em seu símbolo maior. Sua luta, ao contrário do que muitos consideram, foi amplamente vitoriosa em todos os sentidos. Ele não só barrou a decretação da derrama que seria imposta naquele mesmo ano de 1789, como também criou, com seu exemplo e sua determinação, as condições políticas para que, apenas trinta anos após o seu martírio, o Brasil conquistasse a independência política.

O programa elaborado por Tiradentes e seus companheiros, e que provocou a fúria do governo português, tinha uma força política avassaladora. Ele incluía em primeiro lugar, e fundamentalmente, mandar às favas o domínio lusitano sobre o Brasil. Em segundo lugar, os revoltosos pretendiam estancar o roubo das riquezas nacionais. Com isso eles pretendiam investir no desenvolvimento do país.

Como dizia Tiradentes, “se todos quisermos, podemos fazer do Brasil uma grande nação”. “As minas do Brasil estão sendo sangradas e se continuar assim estamos perdidos”, bradava o nosso herói.

“A cada três anos vem um governador, e Capitão General, e todos se vão cheios de dinheiro; trazem uma máquina de criados e cada um deles também volta na proporção cheios de dinheiro, e da mesma forma os ministros”, prosseguia.

“Os filhos de Portugal são senhores do ouro que se tira nesta terra e também levam para Portugal”, dizia o alferes. “Desta forma”, ressaltava o militar, “sempre esta terra será miserável, quando na verdade, se o ouro ficasse aqui poderia até ser colocado nas calçadas das ruas”. “E nós havemos de estar aturando isto?”, indagava Tiradentes, acrescentando que o que ele defendia não era apenas um levante no país. “O que estamos fazendo é restaurar a nossa terra. É impedir que nos façam de escravos”, argumentava.

O plano previa também o incentivo vigoroso à criação de indústrias no país, produção de minério de ferro, indústria têxtil, etc. A capital deveria ser transferida para o interior do país. Seria instalada em São João Del Rei. Também seria garantido o ensino público e gratuito para todos e seria fundada a Universidade de Vila Rica, nos moldes da famosa Universidade de Coimbra. O crescimento populacional seria incentivado para, como já preconizava Pombal, poder garantir a ocupação efetiva do território e também para propiciar as condições para a defesa do Brasil.

Havia ainda alguns pontos no programa que não eram consenso entre todos os revolucionários naquele momento, mas que já eram defendidos arduamente pelo alferes. Um deles era a implantação da República em substituição à monarquia e o outro era a libertação dos escravos. O jurista e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, por exemplo, no momento em que foi suspensa a derrama, dois dias após a traição de Silvério, sem ouvir ninguém, e até por subestimar a mediocridade de seu interlocutor, tentou, numa atitude desesperada, convencer o Visconde de Barbacena a liderar a revolta assumindo a condição de chefe de uma monarquia brasileira.

TRAIÇÃO

A traição de Silvério dos Reis, que Kenneth Maxwell tenta minimizar em seu livro “A Devassa da Devassa”, interrompeu momentaneamente os planos de independência dos Inconfidentes e propiciou o início da repressão política aos revoltosos.

Aliás, Silvério não só traiu ao denunciar o movimento ao Visconde de Barbacena, em 15 de março de 1789, e provocar, com isso, a suspensão da derrama dois dias depois, como também foi decisivo para a prisão de Tiradentes. Foi ele quem localizou o padre que mantinha o alferes escondido. Entregou o pobre homem ao vice-rei e o religioso, ameaçado de morte, não resistiu e abriu o local onde estava Tiradentes.

Três anos confinado a uma cela incomunicável e sob violenta tortura, numa ilha tão sombria e desumana quanto a atual base norte americana de Guantánamo, não conseguiram abater o líder dos inconfidentes. Pelo contrário, esta provação acabou reforçando nele a certeza na vitória, como ficou comprovado por sua atitude tranqüila diante de seus algozes. “Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria pela liberdade de meu país”, disse ele diante das ameaças de seus torturadores.

Desde a sua prisão, em 10 de abril de 1789, na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, até 18 de abril de 1792, quando foi lida sua sentença, Tiradentes suportou um verdadeiro inferno. Foram três anos de privações, torturas e interrogatórios intermináveis. No total o alferes foi inquirido onze vezes. Em nenhuma delas houve a presença de advogados ou de qualquer observador isento.

Somente no último mês antes da sentença as autoridades portuguesas nomearam, à revelia dos acusados, o advogado José de Oliveira Fagundes para fazer um arremedo de defesa para todos os inconfidentes. Os soldos do advogado foram pagos pelas autoridades portuguesas.

Era necessário uma fachada de legalidade (como essas que assistimos hoje em julgamentos como o do presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, ou do líder maior do povo iraquiano, Sadam Hussein ), com juízes fantoches, advogados impostos e testemunhas falsas. Ou seja, um julgamento farsa.

Afinal, já no início das perseguições aos inconfidentes, querendo montar uma fachada legal mais eficiente, o vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza entrou em atrito com o governador de Minas porque este estava prendendo e torturando várias pessoas sem a menor preocupação com as “formalidades” legais. Não é à toa que o poeta Cláudio Manoel da Costa foi assassinado na cela, após ter todo o seu dinheiro roubado por um bate-pau enviado por Barbacena à sua fazenda.

Mas, como afirmamos, a farsa do julgamento era tão evidente que a decisão de condenar Tiradentes à morte já havia sido tomada pela própria rainha, em 15 de outubro de 1790, ou seja, dois anos antes do início do julgamento. Nada do que se dizia ali mudaria as sentenças.

Os outros dez inconfidentes que foram condenados à morte junto com Tiradentes também tiveram suas penas comutadas para exílio perpétuo dois anos antes, na mesma data, isto é, 15 de outubro de 1790. Mas a comunicação da mudança das penas só foi feita no dia 19 de abril de 1792. Os juízes leram a sentença da condenação à morte dos 11 inconfidentes no dia 18, deixaram passar um dia inteiro, para depois apresentar, no dia 19 de abril, a mudança como tendo sido fruto dos argumentos da defesa. Pura mentira. Já estava tudo decidido desde 1790.

FARSA

Isto é, toda a farsa do julgamento transcorreu com as decisões já tomadas por Carta Régia, em Lisboa, dois anos antes.

Tiradentes, mesmo percebendo tudo, assim mesmo comemorou a decisão. “Fico feliz que meus companheiros tenham escapado”, disse ele ao frei Francisco Penaforte, que o acompanhou em seus derradeiros momentos. O frei Penaforte, aliás, comentaria mais tarde, em seus escritos, a grande e decisiva impressão que teria lhe causado a figura de Tiradentes. “Era um entusiasta, um destemido. Este homem foi um daqueles indivíduos da espécie humana que põem em espanto a própria natureza”, disse.

Ideólogo e organizador do movimento, Tiradentes participou de tudo desde os primeiros dias. Esteve na Europa, em 1786, nas articulações para obter o apoio internacional ao levante. Articulou uma ampla frente política interna para conduzir o movimento. E, no momento da sua prisão, estava no Rio de Janeiro, arregimentando adeptos para a rebelião e, também como ficou claro nos Autos da Devassa, preparava a tomada do ouro que seria transportado para Portugal.

Segundo os entendimentos com Thomas Jefferson, a tomada do ouro era decisiva para dar início ao levante (não se devia esperar pela derrama) e para comprar armas e pagar as despesas com os apoiadores que viriam da França para lutar junto com os brasileiros.

Durante todo o período em que esteve preso, Tiradentes não deu nenhuma informação importante ao inimigo. Nos dois primeiros interrogatórios foi evasivo e ironizou as perguntas. Nada disse de importante.

Perguntado se era verdade que ele pretendia promover o levante e que para isso já teria o apoio de Minas, Rio e São Paulo, e que teria dito também à testemunhas que contava com apoio internacional, respondeu: “é tudo mentira. Só diria essas coisas se estivesse bêbado ou doido”. “É tudo uma quimera. Quem sou eu para poder persuadir um povo tão grande a semelhante asneira”, concluiu, deixando furiosos os inquisidores.

No terceiro interrogatório, Tiradentes tomou conhecimento da traição através da presença, na sessão, do traidor Silvério dos Reis. O alferes ficou em silêncio e nada respondeu.

No quarto interrogatório, Tiradentes decide assumir toda a responsabilidade: “Até agora neguei tudo para encobrir minha culpa e para não perder ninguém. Porém, diante das fortíssimas instâncias com que me vejo atacado, resolvo dizer a verdade. É verdade que se premeditava o levante. Fui eu quem idealizei tudo, sem que nenhuma outra pessoa tenha me influenciado”.

Com essas declarações Tiradentes assume para si toda a responsabilidade pelo plano de libertar o Brasil. Essa postura, que ele mantém nos interrogatórios seguintes, confirmou ser ele o grande líder do movimento e a pessoa de maior vulto entre todos os revolucionários de 1789.

EXEMPLO

Seu exemplo, apesar de todas as tentativas de monarquistas como Joaquim Norberto e neoliberais puxa-sacos como Kenneth Maxwell, de desqualificá-lo, ultrapassou o seu tempo e transformou-o no símbolo maior da luta de todos os brasileiros pela liberdade.

Sua grandeza ficou evidenciada na fúria e no ódio que ele despertou nos inimigos do Brasil. Esse ódio foi expresso no restante da sentença proferida contra o alferes. “Mostra-se que este abominável réu ideou a forma da bandeira que devia ter a república, que devia constar de três triângulos com alusão às três pessoas da Santíssima Trindade, o que confessa. Ainda que contra este voto prevaleceu o réu Alvarenga, que se lembrou de outra mais alusiva à liberdade, que foi geralmente aprovada pelos conjurados. Também se obrigou o dito réu Tiradentes a conduzir para a sublevação a todas as pessoas que pudesse”.

Portanto, conclui a sentença, “condenam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas Gerais, a que, com baraço e pregação, seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre e que, depois de morto, lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde, no lugar mais público dela, será pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo também os consuma; declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão edifique, e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelo bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve em memória a infância deste abominável réu”.

PASSEATA

Apesar desta decisão pomposa das autoridades portuguesas, não durou muito o seu “padrão de infâmia” mandado erguer por eles em Vila Rica. Em 21 de abril de 1821, um ano antes da conquista da Independência, uma multidão saiu às ruas da cidade para destruir a geringonça. Em passeata dirigiram-se até a antiga casa do alferes para, em grande festa popular, derrubar o tal “padrão da infâmia”, levantado pelos colonizadores. Um ano depois, ou seja, apenas três décadas após o seu sacrifício, o sonho de Tiradentes se tornaria realidade. O Brasil, como queria o alferes, mandaria Portugal às favas.

Retirado do site: http://www.horadopovo.com.br/2006/abril/21-04-06/pag5a.htm